O crime de infanticídio encontra-se descrito no art. 123 do CP: “Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após.”
Pode ocorrer que terceiro realize o verbo típico ou concorra para a prática do crime. Surge a questão: o terceiro é autor ou partícipe de homicídio ou infanticídio?
Trata-se de crime próprio, uma vez que somente a mãe pode ser sujeito ativo principal. Essa qualificação doutrinária, porém, não afasta a possibilidade da concorrência delituosa.
A norma de extensão do art. 29, caput, 1.ª parte, do CP, reza: “Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas”. Dessa forma, quem concorre para a prática do infanticídio deve submeter-se à sanção imposta.
A solução, entretanto, nunca foi pacífica. O centro da discussão situa-se na questão da comunicabilidade da elementar “influência do estado puerperal”, nos termos do art. 30 (antigo art. 26 do CP): “Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime”. Transmitindo-se o elemento típico ao terceiro, responde por infanticídio; caso contrário, por homicídio.
Na doutrina brasileira, adotavam o ponto de vista da comunicabilidade (infanticídio): Roberto Lyra, Olavo Oliveira, Magalhães Noronha, José Frederico Marques, Basileu Garcia, Euclides Custódio da Silveira e Bento de Faria. Ensinavam que o partícipe deve responder por crime de homicídio: Nélson Hungria, Galdino Siqueira, Costa e Silva, Heleno Cláudio Fragoso, Salgado Martins e Aníbal Bruno.
Atualmente, defendem a tese do infanticídio: Paulo José da Costa Júnior, Delmanto & Delmanto, Luiz Regis Prado & Cezar Roberto Bitencourt, Mirabete e Damásio.
Nélson Hungria, durante quarenta anos, foi o maior defensor da incomunicabilidade. Já em 1937, apreciando a legislação penal então vigente e o Projeto Sá Pereira, dizia: “É bem de ver ainda que não pode invocar a honoris causa”(....)“o co-partícipe no crime da parturiente, seja ele quem for”.[1] Analisando o CP de 1940, de quem foi seu principal autor, afirmava: “Não diz com o infanticídio a regra do art. 25 (‘Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas’). Trata-se de um crime personalíssimo. A condição ‘sob a influência do estado puerperal’ é incomunicável. Não tem aplicação, aqui, a norma do art. 26, sobre as circunstâncias de caráter pessoal, quando elementares do crime. As causas que diminuem (ou excluem) a responsabilidade não podem, na linguagem técnico-penal, ser chamadas circunstâncias, pois estas só dizem com o maior ou menor grau de criminosidade do fato, ou seja, com a maior ou menor intensidade do elemento subjetivo ou gravidade objetiva do crime. O partícipe (instigador, auxiliar ou co-executor material) do infanticídio responderá por homicídio. Como diz Gautier, ‘tous participants autres que la mère sont régis par le droit commun’. O privilegium legal é inextensível. A quebra da regra geral sobre a unidade de crime no concursus delinquentium é, na espécie, justificada pela necessidade de evitar-se o contra-senso, que orçaria pelo irrisório, de imputar-se a outrem que não a parturiente um crime somente reconhecível quando praticado “sob a influência do estado puerperal”.[2]
Dotado de fascinante cultura jurídica e conhecedor profundo da doutrina e da legislação estrangeira, especialmente a italiana e a suíça, Hungria era um brilhante expositor, notável crítico e argumentador insuperável. Na palavra de Roberto Lira, “uma culminância”.[3] “Um homem em dia com a ciência de seu tempo”, como lembrava Heleno Cláudio Fragoso.[4] Tornaram-se célebres os intermináveis debates doutrinários, principalmente com Magalhães Noronha, de quem costumava discordar em longas e acaloradas correspondências, algumas transcritas em seus Comentários.
Nélson Hungria dificilmente mudava de opinião, sendo conhecido pela firmeza de suas posições. Mas, por volta de 1960, como nos confiou Heleno Cláudio Fragoso num encontro que tivemos no Rio de Janeiro, Hungria, já beirando a aposentadoria, passou a “ouvir mais”, alterando orientações apaixonadamente preservadas ao longo dos anos. Tanto que, membro da Comissão elaboradora do Anteprojeto de Código Penal de 1963, várias vezes surpreendeu seus pares aceitando teses contrárias ao seu pensamento ardorosamente exposto em suas obras. Foi o que aconteceu em relação ao tema do concurso de pessoas no infanticídio, em que modificou sua posição na última edição de sua obra, fato que passou despercebido da maioria da doutrina brasileira. Reconhecendo humildemente o engano e dando a mão à palmatória, adotou a tese da comunicabilidade na 5.ª edição dos Comentários: “Comentando o art. 116 do Código suíço, em que se inspirou o art. 123 do nosso, Logoz (op. cit., p. 26) e Hafter (op. cit., p. 22), repetindo o entendimento de Gautier, quando da revisão do Projeto Stoos, acentuam que um terceiro não pode ser co-partícipe de um infanticídio, desde que o privilegium concedido em razão da ‘influência do estado puerperal’ é incomunicável. Nas anteriores edições deste volume, sustentamos o mesmo ponto de vista, mas sem atentarmos no seguinte: a incomunicabilidade das qualidades e circunstâncias pessoais, seguindo o Código helvético (art. 26), é irrestrita (‘Les relations, qualités et circonstances personnelles spéciales dont l’effet est d’augmenter, de diminuer ou d’exclure la peine, n’auront cet effet qu’à l’égard de l’auteur, instigateur ou complice qu’elles concernent’), ao passo que perante o Código pátrio (também art. 26) é feita uma ressalva: ‘Salvo quando elementares do crime.’ Insere-se nesta ressalva o caso de que se trata. Assim, em face do nosso Código, mesmo os terceiros que concorrem para o infanticídio respondem pelas penas a este cominadas, e não pelas do homicídio”.[5]
Poucos notaram a mudança de posição de Hungria.[6] Prova é que até hoje, mais de 20 anos depois, ele continua erroneamente sendo citado por quase todos os autores, inclusive por nós,[7] como partidário da tese da incomunicabilidade. Nem o próprio Fragoso deu conta desse fato, pois em 1979, no mesmo volume da edição em que Hungria passou a aceitar a tese da responsabilidade do terceiro a título de infanticídio, ele, Heleno Cláudio, co-autor dos comentários, dizia: “Hungria inaugurou entre nós a corrente dos que entendem que o terceiro que coopera no delito comete o crime de homicídio. Sempre entendemos correta a lição de Hungria. Em conseqüência, o estranho que participa do infanticídio pratica o crime de homicídio”.[8] E nas edições posteriores da Parte Geral dos Comentários, o escrito firme de Hungria, ainda inalterado, continua expressando a abandonada orientação do mestre, ao apreciar o antigo art. 26 do CP: “Assim, a ‘influência do estado puerperal’ no infanticídio e a honoris causaprivilegium”.[9]
no crime do art. 134: embora elementares, não se comunicam aos cooperadores, que responderão pelo tipo comum do crime, isto é, sem oPena que Hungria não viveu mais tempo. Teríamos a oportunidade de colher outras lições de quem, considerado o maior penalista brasileiro e inquebrantável defensor de suas próprias idéias, fortaleceu com os anos a virtude da humildade de aceitar a opinião alheia, reconhecendo, como poucos fariam, um erro de quatro décadas. Deu-nos, como afirmou Heleno Cláudio Fragoso, um exemplo “magnífico de fidelidade à ciência e à cultura jurídica”.[10]
[2] Comentários ao Código Penal. 3.ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1955, V:259, n. 58, verbete “infanticídio e concurso de agentes”.
[3] Estudos de Direito e Processo Penal em homenagem a Nélson Hungria. Rio de Janeiro: Forense, 1962, nota introdutória de Heleno Cláudio Fragoso, p. 7.
[4] Estudos de Direito e Processo... cit., p. 8.
[5]1979. Vol. V, p. 266, n. 58.
[6] Mirabete notou (Manual de Direito Penal, Parte Especial. São Paulo: Atlas, 2000, 2:90, n. 4.3.3).
[7] JESUS, Damásio E. de. Direito Penal, Parte Geral. 23.ª ed., São Paulo: Saraiva, 2000, I:443; Parte Especial. 23.ª ed., 2000, 2:111.
[8] Op. cit., Parte Especial, Hungria & Heleno, 5.ª ed., 1979, V:541, n. 28.
[9] Op. cit., 5.ª ed., 1979, vol. I, tomo II, p. 433, n. 121.
Advogado em São Paulo. Presidente e Professor do COMPLEXO JURÍDICO DAMÁSIO DE JESUS. Membro do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos (CONJUR) da Federação da Indústria de São Paulo. Membro da delegação do Instituto Inter-Regional de Criminologia das Nações Unidas (UNICRI) no 12.º Período de Sessões da Comissão das Nações Unidas de Prevenção ao Crime e Justiça Penal, Viena, Áustria (13-22.5.2003). Autor de várias obras jurídicas. Home page: www.damasio.com.br
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JESUS, Damásio E. de. Nélson Hungria e o concurso de pessoas no crime de infanticídio Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 jan 2009, 01:13. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /16609/nelson-hungria-e-o-concurso-de-pessoas-no-crime-de-infanticidio. Acesso em: 29 dez 2024.
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